Universidade e Democracia se encontram no espaço do Comum

14/09/2021 14:49

Miriam Furtado Hartung / Diretora do CFH

A ideia ao propor esse ciclo de debates sobre o futuro da Universidade – as universidades brasileiras em geral e a nossa UFSC em particular – se origina em uma inquietação. Uma inquietação que, imaginamos, esteja nas mentes e nos corações de todos aqueles que se perguntam qual será, afinal, o efeito das “mudanças” que estamos assistindo, já há alguns anos, no mundo e no Brasil, quanto ao lugar e papel da Universidade no projeto de mundo que se desenha.

De saída, este ciclo de debates serve para reafirmar dois princípios fundamentais e estruturantes do nosso metiê. De um lado, a inquietação que expressa a vontade de dar sentido, de saber, de conhecer, de compreender. De outro, a certeza de que essa inquietação encontra seu mais verdadeiro lugar no debate, no diálogo, na troca de ideias – não no seu sentido banalizado que os “coachs” da vida moderna e os democratas de aparência deram a esses termos. Falo num sentido mais radical, do embate de ideias, do confronto de argumentos, do contraste entre visões e da disputa de entendimentos que, com lógica, evidências e demonstrações, enfrentamos o dilema de compreender o mundo e imaginá-lo como um lugar melhor para as realizações humanas.

É para encontrarmos, no diálogo – que nem sempre é pacífico ou consensual – aquilo que de melhor podemos pensar em fazer em favor da emancipação e da superação da miséria humana, em todos os seus sentidos. Onde não há debate e onde se força um consenso aparente não há diversidade efetiva, não há reconhecimento da alteridade, da diferença, enfim, do Outro. Esse é, entendo eu, o fundamento e o espírito da ideia, do projeto mesmo de Universidade como lugar onde habita a busca de conhecimento, a produção de saberes, de forma ampla, democrática, inclusiva. Essa premissa deveria ser de conhecimento de todos – essa é a parte Comum de nossa ideia de Universidade: o plano onde Universidade e democracia se encontram.

A segunda motivação, por outro lado, se expressa na ideia de “InComum”. O que temos visto ao longo dos últimos anos é uma insidiosa tentativa de transformar as universidades em organizações sujeitas a regras e perspectivas contábeis e gerenciais. Tudo funciona como se o conhecimento pudesse ser medido, pesado, comparado de alguma maneira que não apenas sua capacidade de compreender o mundo e transformá-lo em benefício da maior parcela possível da humanidade que esteja em nosso alcance.

Nas nossas universidades, alguns incautos colegas têm aderido, com inacreditável força e determinação, a esse projeto que poderíamos chamar de “contábil” ou de gerencial. Não é, então, estranho a esse momento o fato, improvável há bem poucas décadas, de que alguns de nós fazem hoje reverência absoluta aos variados e intermináveis mecanismos de quantificação, hierarquização, controle, avaliação e julgamento de nossa produção. Aliás, o termo em si, produção, já deveria ser objeto de estranhamento! E isto parece estar sendo feito sem ao menos termos o trabalho de encarar, seria e profundamente, aquilo que sabemos, por nosso próprio cotidiano, ser muito complexo: como avaliar os outros? Como aferir, com justeza, o que vai dentro das quantidades mensuráveis? Abrimos mão das perguntas que devíamos fazer e ficamos apenas com respostas de que não gostamos, mas que muitos passaram a fazer profissão de fé, repetindo-as como ventrículos.

Se estas pergunta fossem feitas de forma séria, talvez, alguns não aderissem tão facilmente aos projetos de transformar a universidade e o conhecimento em algo assim como “feitoria de produtos”… enfim, como uma empresa. O conhecimento, o saber na Universidade — cujos contornos começam a aparecer — são tomados apenas como realizações do espírito e da razão que devem ser transformados em objetos tangíveis e aptos a serem expostos em plataformas métricas, idealmente monetizados e, finalmente, apreciados por sua capacidade de serem negociados num mercado ou postos à disposição do “setor produtivo” – o que, não nos enganemos, será sempre a expressão de uma mesma maquinaria que a tudo quer transformar em mercadoria.

Certamente em contraste com essa visão – verdadeiro “espectro que assombra” as universidades neste nosso tempo – chamamos a essa “mesa”, neste primeiro evento de nosso ciclo, o filósofo e o rapper. Aparentemente, talvez, habitantes de bordas opostas no mundo da razão e da criatividade, a filosofia e o rap, o pensamento vertical, que visa uma altura de onde possa contemplar a vida, e os versos cantados em espiral, que pretendem envolver e envolver-se no ritmo de mundo, são plenas realizações vibrantes de nossa capacidade de pensar e imaginar. Na forma refletida e falada, ou na forma rimada e cantada, a palavra na filosofia e no rap visa sempre o outro, o reconhece e o inclui num diálogo virtual onde se encontram como interlocutores.

Diferentes, sim, mas idênticas no plano das realizações do humano; ambas realizam à sua maneira a imbricação necessária a um modo de pensamento e reflexão inclusivos, que deve ser a marca de uma universidade verdadeiramente democrática. Que a partir desse instante, então, tomemos a sério a oportunidade de segui-las nessa nossa iniciativa de começarmos a nos pensar e a nos imaginar, redefinindo um horizonte no qual, quem sabe, poderemos nos tornar melhores ou, ao menos, mais atentos ao que pode nos unir na busca de um futuro melhor.